Barata a bala…

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A procura do elixir da longa vida embrenhou povos, civilizações e culturas na densa floresta da alquimia que, na ávida procura da eterna juventude, buscaram a árvore da verdade que encontraram na raiz da morte combinando elementos que, por mero acaso, trouxeram um porvir que, a partir dos século X, vem confirmando a omnipresença da sua sombra, não deixando qualquer réstia de Humanidade. Foi assim que, desde o início da era Cristã, a sorte ou o azar colocaram nas mãos dos chineses uma invenção que usaram, primeiro, para fins pirotécnicos e, nove séculos depois, para finalidades bélicas sob a forma de foguetes e bombas explosivas, lançadas com recurso a catapultas. Do oriente, os seus efeitos atingiram o ocidente!

Os trons, a que se refere Fernão Lopes na sua crónica de D. João I, correspondem ao troar de canhões que, no campo da batalha decisiva, ajudaram a escrever a vitória que assegurou a consolidação da independência de Portugal, que mais uma vez teve de se erguer em armas contra Castela porque o clero e a nobreza não queriam perder os seus privilégios! Os anos foram passando, os séculos foram dobrando e a arte da guerra arrefeceu alfagemes para industriar armeiros que usaram o seu engenho para aprimorar pistolas e espingardas, fuzis e pederneiras que cuspiam fogo graças à ignição da pólvora que, após se armar o cão, percutia invólucro que fazia expelir pelo cano projéctil a que também se chama bala.

Barata a bala, fácil a arma. O dispositivo só funciona quando todos os elementos, concebidos para matar, se encontram presentes, incluindo a peça final para premir o gatilho e acionar o percutor: o bicho homem, único animal que não mata para se alimentar, mas apenas para derrubar o seu semelhante!

Desde o século X, do oriente ao ocidente, os campos de batalha ficaram ainda mais vermelhos com o sangue dos inocentes, derramado em palcos de guerra mais ou menos convencionais, nos conflitos regionais, nas guerras de dimensão mundial, em massacres de etnias, em genocídio de povos, nas limpezas étnicas, nas atrocidades rácicas, em barbáries gratuitas. Mais recentemente, em execuções sumárias testemunhadas pela frieza das televisões, pela inércia de presentes que foram os mais ausentes, pelo que em vez de agirem demoraram bastante a reagir. Assim se apunhalam as costas da Humanidade!

O desígnio da paz encontra-se, há muito tempo, capturado pela demagogia política e pela retórica ideológica que encobriu ações que purgaram sombras, que nunca encontraram o sol dos exílios dourados, apenas porque os ditames do medo as viam como ameaças ao poder ditatorial que, sob a aparência de democracia popular e a ilusão da bandeira da paz, se transformaram nos maiores carniceiros da Humanidade. Uma espiral de violência, que nasce de sementes de ódio, gera ainda mais violência!

Barata a bala, o elemento mais pequeno de uma engrenagem que, sendo globalmente mais dispendiosa, para pouco ou nada serve sem o projétil projectado por cano espiralado para atingir velocidade e alcance verdadeiramente surpreendentes, tornando ainda mais letais armas de guerra sofisticadas que, nalguns países, se podem adquirir ao virar da esquina, ao alcance de qualquer bolsa. Filhos e filhas perdidos nos jogos de guerra que alimentam a propaganda que os faz acreditar que quando tiram a vida a crianças inocentes, ou ceifam populações indefesas, estão a lutar pela Pátria, que também poderia ser Mátria, mesmo que por preguiça, ou cómoda ignorância, desconheçam os significados de ambas. Sem conversa, sem pensamento, apenas dispara e corre!…

Derrubam-se estátuas de mercadores de escravos que, mesmo naufragando, não apagarão as marcas da discriminação que os estatuados deixaram naqueles que foram escravizados pelo seu semelhante, independentemente da cor da pele, crenças ou etnia. A sociedade esclavagista não deixará de existir apenas porque ódios antigos se encontravam adormecidos, e tiveram um despertar violento, pois a onda de racismo continua a encapelar a maré que não será fácil de virar. Violência gera mais violência! Intolerância cria ainda mais intolerância! Pode-se derrubar uma estátua, mas não se conseguirá colocar borrão sobre as páginas da História que anunciaram um novo tempo para a globalização se revelar, através das trocas comerciais e das permutas intercontinentais. Mesmo que o acaso tenha levado o navegador para o novo mundo e a sua teimosia o situasse nas Índias orientais!…

Muita gente tem sido, entretanto, baptizada no preconceito, que é confirmado no ódio e ordenado na violência! Somos quase todos filhos do mundo moderno, gerados pelos meios de comunicação de massas, dados à luz pela TV… Enchem os nossos ouvidos com os disparos e os gritos da guerra. Sobrecarregam os nossos olhos com imagens de violência. Sejam balas reais, ou balas de borracha, sente-se o ar impregnado de cheiros a pólvoras e a gases, em ecos de manifestações aparentes, que transformam ruas, praças e avenidas em campos de batalha, onde todos os excessos acontecem de ambos os lados da barricada. As mentalidades não mudam enquanto a cultura da violência gratuita não evoluir e os barcos negreiros continuarem a sulcar memórias, que não zarparam de instalações litorais, onde se encurralavam seres humanos em jaulas como se fossem animais, para os amontoarem em porões imundos a caminho do novo mundo…mas não se pode passar para o outro extremo, ao considerar que os descendentes dos mercadores de escravos negros devam ser responsabilizados por atos alheios, o mesmo se diga dos colonizadores, dos colonialistas, dos governos que prosperaram com o tráfico negreiro.

Provavelmente, cada estátua que existe desperta sentimentos e reacções que levantam diferenças de pessoa para pessoa. Talvez nenhuma possa resistir à diferença de opinião, pois cada estatuado terá o seu lado lunar e a sua feição solar. Haverá sempre um pretexto para derrubar, pois o que para uns é um herói para outros não passa de facínora, aquele que para muitos realizou óptimas coisas, para alguns só fez coisas péssimas…e vice-versa!

Vulto proeminente da cultura portuguesa, António Vieira, frade jesuíta ao serviço da missão de evangelizar os gentios, ergueu-se contra os colonizadores que não respeitavam os direitos dos indígenas das terras de Vera Cruz, os únicos que se podem dizer de raiz brasileira, pois os outros resultam de um cadinho que fundiu etnias numa miscigenação que marca o Brasil de hoje. Considerou ainda absurda a distinção de judeus convertidos forçadamente ao cristianismo, enfrentando os agentes do santo ofício, o que lhe valeu perseguição que justificou refúgio na cidade eterna e proteção papal. Faltou-lhe uma atitude mais ousada para condenar abertamente o tráfico negreiro, o que por si só parece justificar a profanação de uma das estátuas que lhe ergueram em Lisboa. Derruba-se, até por uma pequena diferença de opinião!

Barata a bala que larga tinta, fácil a arma do populismo que profana a História, alimentando-se de ignorância e dessedentando-se no obscurantismo e na intolerância. O ódio encerrou-se num círculo difícil de quebrar. A Humanidade perdeu o ponto de equilíbrio que mitiga extremos!