Rachele Somaschini: “O Rali de Portugal é um evento imperdível para qualquer piloto”

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Rachele Somaschini encontra na adrenalina do rali o combustível para o seu corpo. A piloto italiana de 31 anos nasceu com fibrose cística, mas seu estado de saúde nunca foi um obstáculo para perseguir a sua paixão e já tem uma vasta carreira, não apenas em Itália, mas também em diversas categorias internacionais, como o FIA ERC e o TER Series nas últimas temporadas. Este ano, a piloto natural de Milão assumiu o emocionante desafio de competir em seis etapas do Campeonato Mundial de Rali, incluindo a prova portuguesa e, em entrevista ao AM Motores, não tem dúvidas em afirmar que “o Rali de Portugal é um evento imperdível para qualquer piloto”.

AM-Motores (AMM) – É piloto profissional de rali, que não é a escolha de vida mais comum para uma mulher, especialmente com uma condição específica como a sua. De onde vem toda essa paixão?

Rachele Somaschini (RS) – Cresci numa família apaixonada por automobilismo: o meu pai correu nos anos 80 e 90. Também fez dupla com o seu amigo, o famoso piloto Arturo Merzario. A minha mãe pilotava uma moto de trial por diversão. Quando nasci, antes mesmo de saber andar, o meu pai deu-me um pequeno jipe elétrico de brinquedo. No início, eu subia nele e, depois, à medida que fui crescendo e finalmente ia conseguindo alcançar os pedais, passei a conduzir pelo jardim, correndo com os meus dois cães. Ao longo dos anos, o meu pai tentou levar-me para o kart, mas era muito cedo e, no início, fiquei com medo… O sonho de ser piloto provavelmente nasceu naquela época, mas tornei-me plenamente consciente disso quando me juntei ao meu pai numa competição de verdade no circuito de Monza, assim que tirei minha carta de condução, aos 18 anos. Mas, devido à fibrose cística, o meu sonho foi considerado completamente impossível…

AMM – Nasceu com fibrose cística, uma doença genética grave que afeta órgãos internos. Como é que isso a impactou na infância e atualmente?

RS – A fibrose cística é uma doença genética complexa que danifica os principais órgãos internos, particularmente os pulmões, levando progressivamente à incapacidade de respirar. Permanece invisível por muito tempo. Quando eu era mais jovem, os tratamentos eram muito mais longos e complexos, mas, graças à pesquisa científica, a vida diária melhorou significativamente, mas ainda incluindo rotinas exigentes, medicamentos e fisioterapia respiratória. No entanto, como é uma doença degenerativa, os problemas aumentam com a idade: infecções bacterianas, declínio da capacidade pulmonar, hospitalizações… No entanto, graças às novas terapias, disponíveis para 70% dos pacientes, a expectativa média de vida está aumentando (atualmente 40 anos) e a qualidade de vida melhorou. É por isso que é vital apoiar a investigação.

AMM – Como e quando conseguiu iniciar o automobilismo e competir a um nível tão alto, atendendo à sua condição?

RS – Mesmo que me dissessem com frequência que não era possível conciliar a minha rotina com os esforços do automobilismo, passo a passo, comecei a planear duas ou três corridas por ano, que acabaram por se transformar num campeonato inteiro. A vida com fibrose cística é como uma montanha-russa, cheia de altos e baixos. Quando migrei das corridas de circuito para o rali, que é muito mais exigente, decidi focar-me na minha saúde em todos os aspectos, tornando-a minha principal prioridade: alimentação saudável, exercícios no ginásio, saúde mental e controle da ansiedade. Ao fazer isso, consegui melhorar minha resistência e dedicar-me ao rali em tempo integral.

AMM – No automobilismo, teve que lidar com um mundo predominantemente masculino. Como foi lidar com essa realidade?

RS – Ser uma das poucas mulheres num ambiente predominantemente masculino certamente ajudou no começo. Consegui chamar a atenção, mesmo que isso funcione como um boomerang: se não entregas resultados ou não tens um bom desempenho, a atenção torna-se extremamente negativa e vem acompanhada dos clichês negativos habituais. Então, tive de trabalhar muito duro para ganhar respeito. Felizmente, obtive resultados vitoriosos na pista e em subidas de montanha naqueles anos de estreia na minha competição e fui cada vez mais aceite como piloto.

Graças a esses primeiros sucessos, fui notada por uma academia de rali que procurava uma equipa jovem para trazer para o rali, e aceitei o desafio imediatamente. No entanto, eu não imaginava o quão difícil seria entrar num tipo totalmente novo de desporto. Tive que mudar completamente os meus hábitos e estilo de pilotagem. Na minha primeira temporada no Campeonato Italiano de Rally (a principal categoria italiana de rali), não consegui alcançar os mesmos resultados de antes, então tive que manter a cabeça baixa e trabalhar duro novamente. Ano após ano, porém, aprendi a lidar com os desafios e, eventualmente, consegui obter resultados também nesta disciplina extremamente complexa.

AMM – Competiu no Campeonato Italiano de Rally, no Campeonato Europeu de Rally e agora está num programa completo no Campeonato Mundial de Rally, o auge do desporto. Que tipo de comprometimento é necessário para competir a tempo integral?

RS – Visto de fora, tudo parece “um mar de rosas”, mas não é bem assim: correr é apenas a etapa final de um longo e árduo trabalho nos bastidores. Começa com a obtenção do orçamento dos patrocinadores, depois passa para a gestão técnica da escolha da equipe, do carro e do campeonato. Depois, há toda a gestão pessoal: cuidar da fibrose cística, treino físico, treino mental para lidar com a ansiedade e a pressão durante a competição… é um desporto extremamente stressante. É preciso ter corpo e mente fortes, preparados para lidar com todos os desafios inesperados. Cresci muito ao longo dos anos em todos os aspectos, mas não teria sido possível sem a motivação que sempre me impulsiona a dar o meu melhor.

 

AMM – Houve momentos na sua vida em que sentiu vontade de desistir da luta?

RS – Sinceramente, sim, mas por um período muito curto. Quando se trabalha tanto com um objetivo em mente e algo fora do seu controlo interfere negativamente, sentimo-nos desanimados, mas eu sempre tento encontrar o caminho para seguir em frente.

Fui informada sem nenhum aviso de que o nosso contrato não seria renovado devido a uma mudança na política da empresa. Disseram-me isso em novembro, colocando-me em risco de perder a próxima temporada inteira. Senti que meu mundo estava a desmoronar porque o desafio parecia avassalador e não havia tempo suficiente para reagir. Mas, em vez disso, mantive a cabeça baixa, continuei motivada e, aos poucos, trabalhei duro e encontrei soluções. Não foi fácil, mas consegui e, apesar de um ano tão incerto, ainda consegui ganhar dois títulos.

Outros momentos difíceis foram relacionados a problemas de saúde, que me obrigaram a longos internamentos hospitalares com algumas complicações graves, ou a tratamentos longos e intensos, como o que estou a fazer agora, que começou há um ano. Tive sentimentos de desânimo e medo, mas a vontade de continuar venceu. Acreditar num projeto é a arma mais poderosa para enfrentar situações difíceis.

AMM – Tem combinado sua atividade no automobilismo com um projeto de caridade #CorrerePerUnRespiro, que visa consciencializar e arrecadar fundos para a pesquisa sobre fibrose cística e também recebeu diversos reconhecimentos por esse compromisso.

RS – O CorrerePerUnRespiro nasceu em 2016: decidi transformar a minha paixão pelo automobilismo numa ferramenta para consciencializar os entusiastas de carros sobre a fibrose cística, uma doença pouco conhecida e invisível, mas grave.

Muitos fãs do automobilismo, e não só, apoiaram o projeto à sua maneira, por meio de doações, iniciativas, visibilidade ou simplesmente doando seu tempo. Sempre tentei dar voz aos muitos jovens que, como eu, são afetados por essa doença, explicar o que significa viver com fibrose cística e quão cruciais são o desejo de lutar e a pesquisa científica.

O projeto visa não apenas arrecadar fundos para financiar pesquisas, mas também informar as pessoas sobre a fibrose cística e compartilhar experiências. Até o momento, arrecadamos mais de 470.000 euros em doações, que financiaram importantes projetos de pesquisa para encontrar uma cura para todos, que é o meu maior objetivo na vida.

AMM   Também escreveu a sua história no livro “Correre Per Un Respiro” (“Correndo por um Respiro”)…

RS – Tornar pública minha vida com fibrose cística nem sempre foi fácil. Aos 16 anos, percebi que esconder-me não adiantaria nada e que eu poderia ser útil para aqueles que, como eu, lutam contra essa doença, bem como para todas as famílias que precisam cuidar de crianças afetadas pela doença. Entendi que poderia fazer algo real para ajudá-los. Então, decidi abrir-me e o livro é a história real dos marcos mais importantes e momentos cruciais que me permitiram crescer e melhorar, com base na abordagem do “copo meio cheio”.

Eu também queria contar a história de Angélica, minha amiga mais querida que foi acometida pela fibrose cística aos 25 anos. Ela ensinou-me que “somos todos os limites que superamos” e essa mentalidade conduz a minha abordagem no dia a dia. Espero que, ao compartilhar a história dela, eu possa ajudar outras pessoas assim como ela me ajudou. É por isso que tatuei esta frase na minha pele, que também está bem visível na porta do meu carro de rali, para vê-la sempre que entro no carro.

O livro fala sobre corridas, paixões, vida privada, amor, doença, momentos difíceis e momentos de alegria… há risos e lágrimas e na vida, como num rali, tentamos navegar pelas várias etapas especiais que passamos, dando o nosso melhor e nunca esquecendo de… improvisar! Além disso, o livro tem um propósito beneficente, já que toda a receita é doada à Fundação CF.

AMM – O que mais ama no automobilismo? Qual é o seu sonho no automobilismo?

RS – A sensação que tenho quando estou ao volante é maravilhosa, e meu desejo de voltar ao carro lembra-me sempre que as paixões devem ser perseguidas com garra e determinação! Especialmente quando estou no hospital, a passar por momentos difíceis, a ideia de voltar ao carro deixa-me feliz! É como combustível para o meu corpo… o meu sonho é continuar a viver das emoções que o rali me proporciona: lutar para alcançar os melhores resultados possíveis, ganhar experiência e sempre ter saúde e energia suficientes para continuar. Nesta temporada, o sonho de competir no WRC tornou-se realidade, então já estou a pensar no maior: um dia participar no Dakar. Continuar a sonhar faz-me pensar positivamente sobre o futuro: então, por favor, cruzem os dedos por mim!

AMM – Por que você escolheu correr o WRC2 este ano?

RS: Competir no mais alto nível do desporto sempre foi um sonho meu — especialmente ter a oportunidade de participar em eventos icónicos, que acompanho com paixão há anos. Nesta temporada, os astros alinharam-se: um dos meus patrocinadores estava a pressionar por isso e, o mais importante, depois de uma longa e intensa terapia pela qual ainda estou a passar, a minha saúde permitiu-me ir em frente. Então, esse sonho tornou-se realidade.

AMM – Quais são os seus objetivos pessoais e desportivos para esta temporada?

RS: A nível pessoal, enfrentar ralis tão exigentes — e para mim, quase totalmente novos — é um enorme desafio. Só de conseguir lidar com eles, mental e fisicamente, já parece uma grande vitória. Do ponto de vista desportivo, o meu principal objetivo é adquirir experiência e ficar mais confiante ao volante em condições complexas, enquanto melhoro constantemente o meu ritmo e desempenho ao longo da temporada.

AMM – Das sete corridas do WRC que selecionou para esta temporada, há alguma que esteja particularmente animada? E por quê?

RS – Sonhei em competir no Rali da Suécia durante anos. Nunca tinha pilotado em ralis no gelo antes — aquelas etapas ultra rápidas por um paraíso de inverno sempre me deixavam sem palavras quando assistia. E, honestamente, a corrida real superou todas as expectativas. Para uma estreante como eu, foi incrivelmente difícil — de tirar o fôlego do início ao fim — mas valeu a pena.

AMM – Por que incluiu Portugal no seu programa nesta temporada? Quais são as suas perspectivas para o Rali de Portugal?

RS – O meu programa no WRC2 é focado em etapas europeias e eu adoro correr em cascalho — então Portugal foi uma escolha natural. Já experimentei no Rali de Fafe, o que foi uma ótima experiência, especialmente com o clima complicado. Estou super curiosa para encarar a “versão WRC” do evento agora — sei que será um grande desafio, mas espero que as condições sejam um pouco mais fáceis de administrar desta vez.

AMM – Já esteve em Portugal noutros ralis anteriormente. O que sabe sobre ralis em Portugal? Há algum aspecto que se destaque particularmente? E por quê?

RS – Há tanta paixão por ralis neste país — e tanta história também. As etapas são lendárias e, do ponto de vista da pilotagem, são simplesmente incríveis. Como eu disse, sou uma grande fã de cascalho e, quando você combina isso com a atmosfera daqui, o Rali de Portugal é um evento imperdível para qualquer piloto.

AMM – Fale-nos sobre os fãs portugueses de rali. Acha que eles são os melhores fãs do mundo?

RS – Para ser justa, há uma cultura de rali profunda e fãs apaixonados em muitos países. Mas os fãs portugueses estão definitivamente entre os mais entusiasmados — sempre me receberam calorosamente, e estou realmente grata por isso.

AMM – A FIA tem tentado incluir cada vez mais mulheres no automobilismo. Acha que a FIA está no caminho certo? Que outras iniciativas  deveriam ser tomadas para incluir mais mulheres no automobilismo?

RS – Existem vários esforços em andamento, incluindo o novo programa da FIA para talentos femininos emergentes e iniciativas específicas de treino. Esses são passos importantes para normalizar a presença de mulheres no automobilismo e expandir o acesso. Quanto mais mulheres se envolverem, mais oportunidades terão de subir no ranking e competir ao mais alto nível.

AMM – Quem acha que são os jovens mais promissores do rali italiano no momento? Acha que alguns deles poderiam entrar numa equipe de fábrica ou até mesmo ganhar um título mundial?

RS – Existem vários jovens pilotos italianos fortes, que definitivamente merecem uma oportunidade num programa maior, inclusive no cenário mundial. É difícil prever até onde irão, mas o retorno de uma marca italiana lendária como a Lancia ao rali pode abrir oportunidades que simplesmente não existiam até agora.

AMM – Por fim, que mensagem pode deixar a todos os nossos leitores e ao público que acompanhará o Rali de Portugal na estrada?

RS – Eu encorajo todos a respeitarem as regras de segurança e seguirem as instruções. É a maneira mais responsável de garantir que o evento ocorra sem problemas e com segurança, tanto para nós, pilotos, quanto para os fãs que querem aproveitar ao máximo este espetáculo incrível.