Sérgia Dias, a bióloga de Arcos de Valdevez que “salva” pescadores e enguias

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Desde sempre apaixonada pelo meio aquático e marinho, Sérgia Costa Dias, cientista natural de Arcos de Valdevez, tem dedicado a sua vida profissional e académica ao estudo da enguia e das comunidades piscatórias. Esta bióloga participou na atividade “Arcuenses com Ciência”, das Oficinas de Criatividade Himalaya, onde defendeu que a investigação científica deve aliar-se com as comunidades locais, contribuindo, desta forma, para um futuro sustentável da pesca.

Curiosa desde criança pela natureza, Sérgia seguiu naturalmente um percurso académico que a levou ao curso de Ciências do Meio Aquático no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar da Universidade do Porto. Apesar de ter gostado muito da licenciatura, Sérgia Costa Dias sentiu que lhe faltava uma bagagem mais prática e resolveu fazer um estágio no Rio Minho, onde estudou o impacto da pesca do meixão, a cria da enguia. “Quis ver o impacto dessa pesca no ecossistema, tanto a legal como a ilegal. Foi aqui que senti que estava realmente a trabalhar na área”, explicou a bióloga de 46 anos, contando que a sua pesquisa teve que ser feita durante a madrugada. 

Depois deste projeto convidaram-na para ingressar em doutoramento, mas a cientista sentiu que ainda precisava “de meter as mãos na massa durante mais algum tempo”. “Sentia  necessidade de conhecer mais antes de fazer doutoramento nesta área”, confidenciou a cientista que ingressou num projeto do Centro Interdisciplinar de Investigação Marinha e Ambiental (CIIMAR) do Porto, tendo, mais tarde avançado para uma investigação na Ilha Terceira, arquipélago dos Açores. “Tínhamos que percorrer toda a zona costeira para fazer o levantamento da biodiversidade e de todos os potenciais problemas que encontrássemos. Foi uma experiência muito gratificante”, assegurou. Depois de uma passagem de um mês numa reserva natural da Grécia, onde estudou tartarugas, a cientista começou a estudar, no CIIMAR, “a enguia enquanto um indicador da qualidade da água das bacias hidrográficas” no Rio Minho. Mais tarde, Sérgia Costa Dias ingressou no doutoramento para estudar as diferentes fases da enguia e sentiu entraves na sua pesquisa. “Foi um ano catastrófico para a pesca do meixão. Não havia amostras. Fizemos uma alteração bastante profunda no que era o plano de trabalho e passei a ver como é que a enguia se relacionava  com o meio e com o ecossistema. Passei a não querer olhar para uma só espécie, ou seja, queria analisar como é que a enguia era influenciada e como é que influenciava as outras espécies. Se a enguia estava em declínio fui procurar saber como é que isso influenciava os outros organismos e o ecossistema”, explicou a cientista que fez uma parte da sua pesquisa nas Astúrias, Espanha. 

Com o desenvolvimento da sua investigação sobre a enguia, Sérgia concebeu uma linha de investigação que “ia contra as normas”. “Havia trabalhos de pessoas de renome na área que diziam que a enguia comia o que havia, que era omnívora, oportunista e que não se alimentava no inverno. Disseram-me que não era necessário seguir esta linha de investigação porque já se conhecia a alimentação desta espécie, mas eu resolvi continuar. Então, fui ver centenas de enguias e ver o que tinham comido. Concluímos que eram mesmo omnívoras e que são oportunistas, mas com alguns limites. Se tiverem a oportunidade de comer um alimento melhor vão optar por ele”, explicou, garantindo que as enguias só deixam de se alimentar na zona do Norte da Europa. 

“Todos estes trabalhos, até ao momento, tinham sido feitos em zonas do Norte da Europa, onde os rios até gelam no inverno. Por isso, uma enguia que arranje um buraquinho para estar protegida vai sair à procura de um alimento que lhe vai dar pouca energia? Não, deixa-se estar quietinha. Na nossa zona temos invernos amenos e  a temperatura da água continua a permitir que haja movimento, vida e alimento em abundância. Ninguém do Sul da Europa tinha olhado para isto com atenção”, notou a cientista. 

Depois do doutoramento, a cientista continuou a estar envolvida em projetos no estuário do Rio Minho, a desenvolver ações no concelho arcuense, como o Ciência Viva no Verão, e a dinamizar formações sobre manutenção de espaços verdes. 

Sérgia dedicou-se, posteriormente, a estudar e a analisar a valorização de zonas balneares em águas de transição em Gondomar. “Fizemos um trabalho bastante completo de caracterização das ondas e análise da qualidade da água ao longo do rio. Nunca contei tantas bactérias na minha vida. Às vezes, as pessoas vinham ter connosco perguntar se era seguro estar na água porque assustavam-se por nos ver metidos na água com luvas e botas”, gracejou a cientista. 

No fim desta pesquisa, Sérgia Costa Dias decidiu que já tinha encontrado a investigação certa para si e quis debruçar-se sobre a gestão e conservação dos recursos biológicos da zona costeira do Norte de Portugal. “Pretendia, em colaboração com as comunidades piscatórias, fazer um levantamento do conhecimento local e uma caracterização dos recursos biológicos”, explicou, indicando que ela e os seus colegas de investigação promoveram diálogos com as comunidades piscatórias, discutindo as espécies mais relevantes, artes de pesca, áreas de interesse e as preocupações das mesmas. “Os pescadores gostaram muito desta parte e acharam útil passar a sua mensagem e mostrar as suas opiniões. O que fizemos foi pegar na ciência e nos saberes locais e fazer uma discussão animada sobre o que íamos encontrando. Conseguimos estabelecer uma relação entre os dados da pesca que os pescadores nos forneceram e os registos dos dispositivo”, partilhou. 

Com o fim deste projeto, Sérgia Costa Dias continuou junto das comunidades piscatórias e desenvolveu um trabalho sobre o escoamento da pesca. “Nenhum pescador quer liquidar os recursos. Eles querem que continue a haver pesca e que continue a existir stock, mas também querem os produtos valorizados”, notou, explicando que a sua mais recente pesquisa estava relacionada com o mercado online de venda de pescado. “O objetivo geral continuava a ser contribuir para uma melhor gestão e aqui utilizamos mercados eletrónicos como um conceito inovador. Fizemos uma análise da situação, sensibilização para o uso de ferramentas electrónicas e, depois, uma intervenção formativa e capacitação da comunidade. Com a pandemia surgiram várias iniciativas digitais de venda de pescado e, por isso, a transformação digital acelerou  porque fomos obrigados a alterar os nossos hábitos de venda e de compra”, notou, enaltecendo as comunidades piscatórias. 

“Neste trabalho vimos que havia uma grande resiliência nas pessoas, mesmo com a Covid-19 e com outros desafios, e vontade de ultrapassar os problemas, mas ainda há uma relutância no uso de novas tecnologias. Também vimos que a venda online não interfere com a qualidade do produto que chega ao consumidor”, comprovou Sérgia Costa Dias. Para esta cientista, as suas duas últimas investigações mostram que a ciência tem que se aliar à comunidade. 

“É fundamental juntar a ciência às tradições e aos saberes locais. Juntando estas duas partes e se houver um compromisso com a modernização tecnológica conseguiremos ir ao encontro da sustentabilidade da atividade pesqueira regional”, considerou a cientista na palestra realizada nas Oficinas de Criatividade Himalaya.

ENTREVISTA DE ANA MARGARIDA SILVA NA EDIÇÃO DESTA SEMANA DO “ALTO MINHO”