“Acho que a minha mulher me matava se não viesse ao cortejo da Bonança”

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Mais de mil figurantes e cerca de duas dezenas de carros alegóricos desfilaram pelas ruas de Vila Praia de Âncora, em Caminha, no tradicional Cortejo Etnográfico das festas em honra de Nossa Senhora da Bonança. Com o tema “Sons e Cores do Mar à Serra”, esta foi a edição mais participada de sempre e foram muitos os minhotos que “vibraram” ao som das concertinas e dos bombos.

José Cunha, presidente da União de Freguesias de Gondar e Orbacém, foi um dos primeiros a chegar ao largo da estação para assegurar que a “comitiva de 100 pessoas” estava devidamente organizada e trajada para o cortejo. Com dois carros alegóricos, um da desfolhada tradicional, para representar Gondar, e outro das tecedeiras, em representação de Orbacém, o presidente destas duas freguesias, que participou pelo nono ano neste desfile, lamentou que sejam estes cortejos a mostrar aos mais novos como era a vida no campo há 30 ou mais anos. “Já não se fazem aquelas desfolhadas em que as famílias se juntavam à noite com a música e com as concertinas. Hoje para desfolhar milho quase temos de implorar. Agora fazemos os cortejos para mostrar à rapaziada as tradições que se extinguiram”, lamentou o autarca, indicando que a preparação dos dois carros de Gondar e Orbacém demorou cerca de uma semana. 

Ainda a dar os retoques finais nas últimas 24 solhas “resistentes” da “Festa das Solhas”, juntamente, com os 21 miúdos e graúdos, em representação dos solheiros, dos fogueteiros e dos doceiros de Lanhelas, Berta Vilas, uma descendente de fogueteiros, disse que ainda dava gosto olhar para a juventude e ver que as “tradições se mantêm pela freguesia”.

“Em Lanhelas sempre foi muito fácil arranjar pessoas para virmos representar os nossos costumes. Isto está no sangue…. Eu lembro-me até que há muitos anos havia disputas de lugares nas festas para ver quem era o mais bonito, quem cantava melhor”, contou a lanhelense, realçando que todos os materiais para o cortejo foram feitos à mão, à exceção das solhas. “As solhas estiveram cerca de 5 meses no fumeiro. A seguir, vamo-nos juntar e jantar, só temos de arranjar o alho, o azeite e uma frigideira”, comentou um dos membros da Comissão de Festas do Senhor da Saúde e Santa Rita de Cássia, com uma gargalhada.

De volta do “Corvo”, Dionísio Rua, presidente da Junta de Freguesia de Seixas e pescador durante 30 anos, disse estar “orgulhoso” das “13 caras bonitas” que tinha trazido consigo para representar os carochos e a pesca artesanal.

“Os carochos eram os barcos tradicionais que se usavam, pelo rio Minho, antigamente, na pesca. Nos dias de hoje, o Corvo deve ser das últimas réplicas que ainda temos porque já não há quem os faça, infelizmente”, lamentou o autarca que participou no cortejo da Bonança pela primeira vez e até “comprou um traje regional para estar um minhoto vestido mais a rigor”.

A preparar o assador para a chouriça e a cortar a broa, em cima de uma camioneta, Joaquim Manuel, um courense que se tornou um “ribancorense emprestado”, desabafava ter andado a semana inteira a bater às portas para encontrar os 60 figurantes que representaram a freguesia de Riba d’Âncora. “Se não viesse ao cortejo acho que a minha mulher me matava, até os meus filhos foram obrigados”, gracejou Joaquim que perdeu a conta à quantidade de chouriça que assou e foi distribuindo ao longo do cortejo. Riba d’Âncora recriou ainda a ida à fonte. “Ao longo do cortejo, os rapazes andaram a jogar ao jogo do cântaro com as raparigas. Para elas os conseguirem recuperar, tinham de lhes dar um beijo na cara… Ainda saíram daqui mais casais”, insinuou Joaquim Manuel, com uma gargalhada.

Mal as concertinas e os bombos começaram a tocar para dar início ao desfile, Helena, uma vimaranense que mora, há 46 anos, em Vila Praia de Âncora, foi uma das espectadoras que mais “vibrou” com a música tradicional e não tardou em saltar para a Rua de 5 de Outubro para pôr a mão à cintura e dançar com os grupos. “Eu adoro isto! As concertinas, a animação… talvez seja por ser minhota. Infelizmente, nunca participei no cortejo, mas desde os dez anos que tenho esse sonho. Quem me dera dançar horas e horas sempre seguidas ao som das concertinas”, desejou. “Por mim, havia cortejo todos os dias”, completou. 

Maria da Graça, mulher do mar de Vila Praia de Âncora, viu o cortejo com a afilhada Isabel e emocionou-se ao ver passar a representação da Senhora da Ínsua. “A minha família sempre esteve muito ligada à pesca…aliás, até perdi um irmão no mar. A vida no mar era muito boa, mas também era muito dura… Eu não consigo não me emocionar cada vez que falo da Senhora da Ínsua”, revelou, com os olhos cheios de água, enquanto relembrava “os tempos bons” quando participou como peixeira no cortejo.

“Lembro-me que no ano em que participei andávamos com os cestos à cabeça, cheios de peixe, e se os rapazes se portassem mal nós dávamos-lhes com os cabazes nas cabeças. Uma das melhores imagens que ainda tenho do desfile é das pessoas a rirem-se e a baterem-nos palmas”, recordou, com um sorriso, salientando que agora traz sempre um lenço tradicional na cintura para “destacar que em Âncora há festa”.

 

ALTO MINHO Nº 1603 – 14 de SETEMBRO DE 2022