“Um hino à alegria de ser limiano”

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O cortejo etnográfico das Feiras Novas atraiu milhares de pessoas a Ponte de Lima. Durante mais de três horas, desfilaram pelas ruas da vila as mais típicas tradições das freguesias do concelho. Ao longo do percurso, que estava pejado de gente, as centenas de participantes do cortejo ofereceram vinho, broa caseira, chouriço, azeitonas, tremoços, sardinhas, fêveras, sidra, jeropiga, figos entre outros petiscos bem tradicionais desta região. No desfile evidenciou-se não só o aumento significativo de participantes, mas também de crianças e jovens, que garantem a renovação da herança cultural de Ponte de Lima.

Na abertura do cortejo, logo depois do ribombar dos bombos, centenas de pessoas mostraram diversos trajes. Maria João Costa, jovem limiana, já participa no cortejo etnográfico há vários anos e este ano também não faltou. “Fazia todo o sentido voltar a participar porque tivemos um interregno de dois anos e é com grande orgulho que aqui estamos novamente todos juntos. É sempre com muita vontade de participo neste cortejo, porque juntamos um grupo de amigas de infância para desfilar pela nossa terra”, contou, notando que participar neste cortejo também já é uma “tradição familiar”. “Temos a chieira minhota! Eu fui herdando o ouro de família e para mim é uma vaidade e uma chieira poder desfilá-lo neste cortejo aqui nas Feiras Novas”, afirmou, contando que o seu traje também já é de família. “Já passou por alguns ajustes, mas é aquele que já trajo há vários anos nesta romaria”, declarou a jovem.

Também Daniela Margarida cumpriu a tradição de participar no cortejo etnográfico da maior romaria do concelho de Ponte de Lima. “Nos últimos dois anos não tivemos cortejo e este ano tinha que ser a valer!”, declarou a jovem, que não escondeu a felicidade que estava a sentir, notando que este ano teve o “privilégio” de ir na primeira fila. “Nunca tinha ido a abrir o cortejo, mas fui convidada e é sempre uma honra ter a oportunidade de o fazer”, atirou a limiana, que considera que todos os limianos “vibram” com este momento da romaria. “Acho que, cada vez mais, os jovens gostam de participar neste cortejo e acho que faz muita falta porque se não o começarem a fazer isto vai acabar”, sustentou, considerando que o mais importante é “manter a tradição”. A jovem contou ainda que o momento que mais gosta das Feiras Novas é mesmo o cortejo etnográfico. “As noites são sempre divertidas, nós jovens fazemos por isso, mas o cortejo é, sem dúvida alguma, o momento épico da nossa romaria”, comentou.

Também fazia parte do grupo de amigas Maria José Araújo, que não escondeu toda a “boa energia” que se concentrou na hora do cortejo. “Quando era mais nova participava sempre no cortejo, depois deixei de vir e este ano decidi estar aqui novamente, porque acho que fazia todo o sentido depois de dois anos sem Feiras Novas”, começou por dizer, contando que, além disso, também foi desafiada pelas amigas a estar presente. 

“Se fosse a participar sozinha não achava tanta piada, mas como elas vieram eu decidi vir também”, adiantou, contando que o traje que vestiu era emprestado. “Eu tinha um traje, mas, entretanto, uma pessoa vai crescendo e deixa tudo de servir, então pedi emprestado este traje antigo. Entretanto já recebi muitos elogios”, gracejou a jovem. Para Maria José é “um orgulho ser limiana e ter a oportunidade de participar no cortejo etnográfico”. “É muito bom ser limiana, viver as romarias e ter aqui o coração”, concluiu.

Ainda o cortejo não tinha arrancado e já os tocadores de concertina se faziam ouvir. Há 10 anos que Augusto Lima, membro da Associação de Concertinas de Ponte de Lima, participa no cortejo etnográfico. “Comecei quando entrei para a associação e gosto muito disto”, disse. Apesar da alegria que o tocador transparecia, confessou que estes dias de festa foram “cansativos”. “Na quarta-feira participamos na arruada de concertinas e agora no cortejo etnográfico que também é um momento muito bonito da romaria”, atirou Augusto, notando que os seus colegas tocadores de concertina estavam também animados por estarem a animar o cortejo com o som das concertinas.

O S. Miguel de Cabaços foi o primeiro a desfilar no quadro de usos e costumes, seguindo-se a freguesia de Fontão com a Páscoa. Foi também com a Páscoa e com o barqueiro que a freguesia de Vitorino das Donas se apresentou no desfile.

Entre os muitos participantes estava Gabriel Fonte, que já costuma participar no desfile. “É com todo o gosto que venho representar a minha freguesia. Vimos mostrar aqui um pouco das tradições que nós temos”, declarou o jovem, contando que vive as Feiras Novas com “muito gosto”. “Vivo sempre as Feiras Novas ao máximo, porque é uma festa que acontece de noite e de dia e é realmente isso que acontece, ou seja, durante a noite nós temos muito onde nos divertirmos, durante o dia também temos várias coisas a acontecer e os limianos sem dúvida que vibram com esta romaria”, considerou Gabriel que estava acompanhado pela presidente da Junta de Vitorino das Donas, Elisabete Ribeiro Gomes.

A autarca contou que já costumava participar no cortejo etnográfico das Feiras Novas, mas enquanto presidente da Junta foi a primeira vez. “É muito bom estar aqui outra vez passado dois anos, a representar da melhor forma a nossa freguesia, porque também é uma maneira de mostrarmos a nossa freguesia e das pessoas sentirem a nossa identidade”, afirmou Elisabete, contando que o tema deste ano foi “o rio e o barqueiro”. 

“Este tema é novo, nunca o trouxemos ao cortejo etnográfico e deu muito trabalho. Tivemos que fazer tudo de raiz, o barco, a encenação do rio e tudo o resto”, explicou a autarca, que envergava um “traje de ir à feira”. “Antigamente, em Vitorino das Donas existia o cais de pessegueiro e as pessoas entravam no barco e atravessavam para o outro lado para ir à feira de Lanheses, para ir às festas, a Fontão, e o meu traje é exatamente de ir à feira vender. Mandei-o fazer de propósito, porque há três anos fiquei com o bichinho e tenho imenso orgulho nele”, declarou a presidente, acrescentando que só o usa nas Feiras Novas.

Os romeiros de Santa Justa foram de S. Pedro d’Arcos até às Feiras Novas para demonstrar a devoção na santa a quem muitas mulheres têm pedido ajuda para engravidar. Conhecida também por ser uma romaria a cavalo, esta festa típica de S. Pedro d’Arcos levou cerca de uma centena de pessoas a representar este quadro do cortejo etnográfico. “Mas os romeiros de Santa Justa são muitos mais”, assegurou, entre risos, o presidente da Junta de S. Pedro d’Arcos que também participou no desfile. A Romaria de Santa Justa não se realizou este ano por causa do estado de alerta de incêndio, por isso, para S. Pedro d’Arcos a participação no desfile foi também uma forma de reviver a festa. “Esta é uma forma de nos juntarmos e representarmos a nossa freguesia da melhor forma que podemos e estes romeirinhos têm muita tradição por causa da devoção das mulheres que pedem para engravidar”, referiu Custódio Fernandes. 

No carro desta freguesia foi recriada a capela e o “penedo das meias”, que tem servido como referência para os romeiros calçarem as meias porque a capela está próxima, não esquecendo também de levar as duas galinhas brancas que são a promessa para que a santa ajude a engravidar. “No cortejo era costume levarmos umas tijelinhas de vinho e chouriço para oferecer, mas como a pandemia ainda anda aí, achamos que era melhor não”, justificou o autarca.

A freguesia da Correlhã ficou com a responsabilidade de representar o traje e a presidente da Junta, orgulhosamente, foi vestida com o traje de domingar. “Hoje não é domingo, mas é como se fosse”, gracejou Fátima Oliveira. Cerca de centena e meia de pessoas participaram neste quadro do cortejo, recriando vários trajes como domingar, de trabalho, de ir à missa, de mordoma, de senhora e meia senhora. 

“A Correlhã é uma freguesia que anda sempre bem trajada e é muito importante o rigor do traje”, salientou a autarca. A Correlhã criou ainda uma réplica da capela de S. João Baptista para dar o enquadramento certo para as pessoas que levaram o traje de ir à missa. Este ano, coube à Rusga Típica da Correlhã a organização deste quadro com a responsabilidade de arranjar os trajes e as variadas peças que compuseram o quadro. “Mas o traje que eu levo é meu, assim como o ouro, porque eu sou uma minhota típica e cheia de chieira”, frisou Fátima Oliveira que considera desfilar nas Feiras Novas um momento de “adrenalina muito especial”. 

“Só o facto de vir do estacionamento até aqui trajada já é uma sensação espetacular, é mesmo fantástico e só entende isso quem desfila e quem traja. Quem está a ver não tem noção do sentimento e da paixão com que vivemos o cortejo etnográfico”, acredita Fátima. Ao longo do percurso, a Correlhã animou as ruas por onde passou a cantar e a dançar o Vira. “Mostrámos a nossa alegria e a nossa chieira com a representação rigorosa que fizemos dos nossos trajes”, assegurou a autarca, confirmando que na sua freguesia estavam todos com “muitas saudades” das Feiras Novas. Com dois carros no desfile, a Correlhã mostrou muitas peças antigas ligadas à agricultura que pertencem à Rusga Típica da Correlhã que pretende com eles fazer um pequeno museu de objectos tradicionais.

A Romaria do Senhor do Socorro, a produção de mel e a cozedura da broa foram os temas que quase uma centena de pessoas da Labruja levou em três carros até às Feiras Novas. “Foi fácil mobilizar estas pessoas para participarem no cortejo”, assegurou José Nunes, presidente da Junta da Labruja, que ainda tem bem presente na memória a Romaria do Senhor do Socorro deste ano, assegurando que “correu bem demais porque as pessoas estavam sedentas de festa”.

José Nunes disse que na Labruja ainda há gente que coze a broa à moda antiga. “Essas pessoas não participam no cortejo porque já têm alguma idade, mas as que estão cá conhecem perfeitamente essa tradição que herdaram das mães e avós. E ainda se coze o pão à moda antiga na Labruja”, assegurou.

Sobre o mel da Labruja, o autarca de 48 anos garante que é um ofício que tem passado de geração em geração e os mais novos também têm agarrado. “Estamos a falar de um produto que é o mais original possível”, assegurou. Em cima do carro dedicado ao mel da Labruja, David Faria e José Eduardo foram os dois apicultores que se vestiram a preceito para recriar a retirada do mel da colmeia, mas sem abelhas. Um apicultor “a sério” influenciou estes dois amigos da Labruja a começarem a produzir mel, mas não é este o ganha pão de ambos.

“Na Labruja há vários tipos de flor. Em novembro, há a flor do eucalipto, depois vem a acácia e a partir de abril começa a vir a urze. O mel vai mudando conforme a flor”, explicou David, um técnico de telecomunicações que é apicultor há dois anos e tem 50 colmeias.

Ao longo do percurso, David e José foram dando mel ao público, confirmando a ideia de que a Labruja adoçou o cortejo. “Vamos tornar as Feiras Novas mais doces”, gracejou José que é apicultor há 15 anos e tem 10 colmeias. Técnico de máquinas de café, José admitiu, entre risos, que lhe tem dado jeito produzir mel para acompanhar a torrada e o café.

“Desfilar nas Feiras Novas dá muito trabalho, mas também muito gosto porque se não houver este esforço das freguesias não há cortejo. É sempre bom mostrar o que freguesia tem. Nota-se que as pessoas participam com mais gosto e este ano várias fizeram questão de comprar trajes para desfilar”, contou o autarca, corroborando a ideia de que o cortejo etnográfico das Feiras Novas é “um hino à alegria de ser limiano”.

Quase uma centena de pessoas da Ribeira, incluindo os elementos do rancho folclórico, recriou a ida à fonte no cortejo das Feiras Novas. “Temos muitas fontes na Ribeira e um dos projectos da Junta de Freguesia é requalificá-las”, adiantou o presidente da Junta. Em ano de seca, Augusto Rolo confirmou que pelas fontes da Ribeira a água também já escasseia. “Em muitas ainda há água, mas noutras já não. Numas será possível voltar a ter, mas noutras não e será esse o trabalho que também queremos fazer”, acrescentou. A ida à fonte recriada pela Ribeira recordou os tempos de namoro de antigamente, quando as moças iam buscar água e o moços tentavam roubar-lhes um beijo. A coisa podia dar para o torto porque entretanto aparece o pai da rapariga, ela foge e roubam-lhe o cântaro da água que vai de mão em mão até cair no chão. “Felizmente, este ano sentimos que as pessoas aderiram muito para participar no cortejo”, contou Augusto Rolo que desfila nas Feiras Novas há nove anos. “Depois de dois anos de interrupção, voltou a alegria do povo e até S. Pedro ajudou-nos com o bom tempo”, referiu.

Da freguesia da Facha veio um dos grupos mais jovens do cortejo para representar a recolha do leite nos antigos postos. Manuela Coelho era dos elementos mais velhos desta freguesia e uma das únicas que se lembra bem de tirar o leite às vacas para levar ao posto. “Na Facha havia vários postos de leite. Eu sou da Meia de Baixo, por isso, tinha o posto no lugar da Guerra. E na Meia de Cima havia o posto da Porteladia”, contou Manuela, 52 anos, garantindo, entre risos, que o melhor leite era da Meia de Baixo. 

“Lembro-me de ter uma vaca turina muito mansa que dava muito leite. Um dia fui levá-la ao pasto e quando cheguei a casa apeteceu-me fazer uma sopa de leite e tirei um copo de leite da vaca, mas estraguei tudo… a vaca começou a ganhar mamite porque tem que se tirar o leite todo e não um bocadinho como eu fiz”, contou Manuela que ficou com a tarefa de recolher o leite no posto, acompanhada por um fiscal. Infelizmente, para o cortejo das Feiras Novas, a Facha não pôde levar o leite tirado directamente da vaca, por isso, teve de remediar com o leite de pacote distribuído pelos canecos antigos que foram levados por dezenas de jovens do grupo teatral Art’inFacha.

Com uma lampreia espetada num engaço, João Sousa mostrou a ligação de Santa Comba à pesca deste ciclóstomo que tem escasseado no Rio Lima. Pescador amador e secretário da Junta de Freguesia, João foi também o responsável por fazer a imitação de um barco de pesca da lampreia que foi em cima do carro alegórico. “Pesca-se cada vez menos lampreia e este ano foi menos ainda. Dizem que é por causa da falta de água e de facto o Rio Lima não leva água. Dantes ainda se tiravam umas boas lampreias, agora tiram-se umas lampreiazinhas”, lamentou João que desde 2010 tem percorrido o rio à procura delas. 

“Santa Comba sempre teve bons pescadores de lampreia, já herdei isto do meu falecido sogro e de um tio da minha esposa”, contou João que é electricista industrial e natural de Barcelos. “Já estou em Ponte de Lima há mais de 20 anos e desfilar em Ponte de Lima é indescritível, quem desfila nas Feiras Novas tem obrigatoriamente de levar uma cara alegre porque aqui não há tristeza”, garantiu. 

As lavadeiras do Rio Lima também fizeram parte da representação que Santa Comba levou às Feiras Novas, contando ainda com a animação da Associação de Cantares de Santa Comba.

Depois da matança do porco mostrada pela freguesia de Beiral do Lima, a tradicional sardinhada que é servida na Festa de S. Pedro da Seara foi recriada neste cortejo, abrindo ainda mais o apetite a quem assistiu. Maria Celeste Barros levou a bandeira da freguesia a anunciar a festa ao santo popular e confirmou, aos 72 anos, o que os limianos sabem há muito: a ligação ao mundo rural está cada vez mais a desaparecer. 

“O único emprego que havia era a trabalhar na agricultura e fazer pelas coisinhas para ir vendendo. Criávamos gado, o leite era levado ao posto e sabíamos que recebamos certinho o dinheiro da venda. Desde que isso acabou, a agricultura desapareceu e já não dá para pagar ao tractor”, lamentou Maria Celeste que foi roupeira do Limianos mais de 20 anos e também do Moreirense, um caso único na década de 80 por ser uma mulher a garantir os equipamentos de tantos homens. 

Curiosamente, o actual presidente da Junta da Seara foi “um dos meninos” de Maria Celeste quando foi jogador do Limianos. “Ele fazia parte das camadas jovens, mas eu tinha também de lavar os equipamentos dos juvenis, juniores e seniores. Nos primeiros seis anos, lavei a roupa à mão”, contou Maria Celeste que cresceu também rodeada de irmãos, sem raparigas por perto. 

Depois de tantos anos a tratar da roupa dos jogadores, Maria Celeste participou no cortejo trajada de lavradeira minhota. “E se tivesse aqui uma bola de futebol, dava-lhe um chuto”, gracejou. A Seara foi uma das freguesias que deu de comer e beber aos milhares de pessoas que assistiram ao cortejo. Sardinhas, fêveras, vinho, broa e chouriço fizeram parte da ementa desta freguesia nas Feiras Novas. “A Seara traz sempre alegria e simpatia para todos”, garantiu o presidente da Junta, enquanto saboreava uma rodela de chouriço.

Os pregões das vendedoras do peixe que se ouviam pela vila de Ponte de Lima há décadas regressaram para as Feiras Novas através de descendentes destas peixeiras limianas no quadro representado pela freguesia de Arca e Ponte de Lima. “A minha avó Josefa Araújo vendia peixe pelas ruas. O meu pai conta que ela subia a rua do Pinheiro descalça, ia até à Feitosa, com o peixe à cabeça”, contou Cristina Araújo que se inspirou na avó para apregoar “o peixinho bom” que levou ao cortejo. “Ó freguesa venha ver a sardinha ‘bibinha’, veio da costa”, foi gritando Cristina ao longo do percurso.

Além das peixeiras, Arca e Ponte de Lima recriou ainda o jogo do cântaro. “Trouxemos 70 cântaros para o cortejo, alguns para partir e outros para oferecer, principalmente para manter esta tradição do jogo do cântaro”, explicou Guilherme Correia, secretário da Junta de Freguesia, que já tinha participado neste quadro há 15 anos e agora fez questão de regressar. Arca e Ponte de Lima levou quase seis dezenas de pessoas ao desfile para recriar as duas tradições que chamaram a atenção tanto pelos pregões das peixeiras como pelos cântaros a voar até cair. 

“Desfilar nas Feiras Novas representa ser limiano, manter as tradições, passar o testemunho aos mais novos”, afirmou Guilherme, frisando a “adesão fantástica” das pessoas para participarem no cortejo.

ALTO MINHO Nº 1603 – 14 de SETEMBRO DE 2022