Mensagem da Quaresma 2024

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+João Lavrador, Bispo de Viana do Castelo

 

«Vós, irmãos, fostes chamados à liberdade. Não tomeis, porém, a liberdade como pretexto para servir a carne. Pelo contrário, fazei-vos servos uns dos outros pela caridade, pois toda a Lei se encerra num só preceito: “amarás o teu próximo como a ti mesmo”» – (Gal. 5, 13-14).

 

Preparamo-nos para celebrar a maior de todas as solenidades da vida dos discípulos de Jesus Cristo, a Páscoa, na qual a comunidade é convidada a percorrer o itinerário da entrega, da morte e da ressurreição de Jesus Cristo. Celebra este acontecimento como se fosse a primeira vez.

Por isso, também em cada ano, cada cristão e sobretudo cada comunidade cristã, são chamados a percorrer o caminho da quaresma como o tempo de preparação de modo a recolocarem-se não só no trajecto percorrido pelo Povo Biblico na sua passagem pelo deserto em demanda da Terra Prometida, mas sobretudo no percurso de Jesus de Nazaré e dos Seus discípulos que marcam a preparação para o Mistério da Páscoa do nosso Salvador.

  1. Comecemos por nos situar na condição de Povo de Deus, marcado pela dignidade baptismal, mas também seduzido pelo mal e marcado pelo pecado.

Numa cultura das aparências e da superficialidade, exige-se da parte de cada cristão, integrado numa comunidade de discípulos, que se reconheça na verdade do seu ser. Criado por Deus e usufruindo da filiação divina pelo baptismo, é consciente da sua grandeza, mas igualmente, faz parte da condição humana que cada um dos discipulos de Jesus Cristo, contemplando o Mestre e deixando-se interpelar pela Sua Palavra, saiba da sua incapacidade para viver na plenitude a vida a que é chamado e que lhe foi outorgada no Baptismo.

Este tempo é marcado pela necessidade de conversão, metanoia, que não depende tão só do esforço pessoal, embora o exija, mas sobretudo na abertura à graça divina.

 

  1. Este é o tempo da escuta da Palavra de Deus e de deixar envolver pelo abraço misericordioso de Jesus Cristo. Esta experiência maravilhosa que o Povo de Deus realizou no deserto e mais intensamente foi experimentada pelos marginalizados que se aproximavam de Jesus de Nazaré, é a mesma experiência que somos convidados a fazer no encontro coma Palavra de Deus e no saborear o perdão que Jesus continua a oferecer-nos através dos sacramentos na comunidade cristã.

Quão é importante deixarmo-nos deliciar pelas palavras transformadoras de Jesus Cristo que nos dizem: «não são os que têm saúde que precisam de médico, mas sim os enfermos. Eu não vim chamar os justos, mas os pecadores» (Mc. 2, 17); ou então «nem eu te condeno, vai e doravante não tornes a pecar» (Jo. 8, 11).

É neste encontro com Jesus Cristo, deixando-se abraçar por Ele, saboreando o amor misericordioso que os Seus gestos nos oferecem, a vida pessoal e comunitária se renova.

 

  1. Tempo catecumenal. Em cada ano, a comunidade cristã é chamada a reviver a força transformadora do catecumenado. Pela escuta da Palavra, pelo apelo ao discernimento e à opção por seguir a Jesus Cristo, pelos Sinais que nos revelam a Luz nova que nos vem de Jesus Cristo, pela contemplação da água regeneradora e pela experiência da vida nova de Ressuscitados, os discípulos de Jesus Cristos, os baptizados, são chamados a abandonar as obras do homem velho e a revestirem do homem novo, com ao afirma S. Paulo; «despojai-vos do homem velho, no que diz respeito ao vosso passado, do homem corrompido pelas paixões enganadoras; a renovar espiritualmente a vossa inteligência e a revestir-vos do homem novo, criado em conformidade com Deus na justiça e na santidade verdadeiras» (Ef. 4, 22-24).

Cada semana da quaresma está marcada pela liturgia de cada domingo que revela o itinerário catecumenal a que se deve obedecer e sublinhar. A partir da Palavra proclamada e pelos Sinais que a apropria Palavra nos oferece, a comunidade cristã deve inserir-se nesta caminhada de conversão em direcção à Páscoa do Senhor, propondo-se a conversão no amor a Deus e aos irmãos.

Apelo aos sacerdotes que juntamente com os agentes pastorais mais responsáveis da comunidade elaborem um verdadeiro itinerário de iniciação cristã, ao longo da quaresma, assente no dinamismo da liturgia da Palavra de cada domingo. Com este objectivo, o Secretariado Diocesano da Evangelização e Catequese elaborou uma proposta de vivência quaresmal, na família e na comunidade paroquial, que será uma optima ajuda para viver cada semana em ritmo catecumenal, centrado na Palavra de Deus.

Este mesmo desafio lanço aos catequistas, aos diversos movimentos, às famílias e aos jovens.

Vamos viver com entusiasmo, com profundidade e com criatividade este tempo de conversão e renovação pessoal e comunitária.

 

  1. Tempo de reconciliação sacramental. Exige-se uma verdadeira evangelização no que respeita à realidade do pecado na vida pessoal e comunitária e a proclamação da Boa Nova do perdão de Jesus Cristo que passa pelo sacramento da reconciliação e do perdão. Importa ajudar a reconhecer que por vontade divina os gestos libertadores de Jesus Cristo foram entregues aos Seus Apóstolos e neles à Sua Igreja, na pessoa daqueles que têm o mandato de presidir a cada um dos sacramentos, também no da reconciliação.

Igualmente é importante que os sacerdotes se disponibilizem para o acolhimento e para atender cada um dos penitentes que busca o sacramento da reconciliação. Nunca tanto como hoje as pessoas manifestam a necessidade de alguém que as ouça, que as acolha e que lhes ofereça a graça do perdão.

Este é o ministério prioritário do sacerdote. Exorto a cada um dos sacerdotes que se disponibilize, mesmo com sacrifício de outras actividades, para atender as pessoas que desejem receber a graça do sacramento da reconciliação. E mais, que durante este tempo quaresmal se ajude a reconhecer a necessidade do perdão sacramental e se indique horários e espaços onde cada um poderá encontrar um sacerdote para o atender, acolher, escutar e oferecer a graça do perdão.

 

  1. Apelo ao essencial na oração, jejum, abstinência e partilha. Numa sociedade que seduz para a abundância e para a escravidão dos bens materiais, este tempo quaresmal reveste-se de uma oportunidade, a exemplo de Jesus Cristo no deserto, se afasta da tentação do prestígio, do possuir, do prazer desenfreado e do poder, para se centrar no essencial da vida de cada pessoa.

Deste modo, o apelo à oração intensa, auscultado a vontade de Deus e deixando-se conduzir por ela, discernindo os caminhos da verdadeira liberdade e a realização pessoal, em partilha comunitária, e sentido a prioridade dada ao amor a Deus e aos irmãos.

Porque a pessoa humana é um todo, seja na sua grandeza seja na sua relação com os outros, o jejum e a abstinência devem ser acolhidos como sinais e meios para exercitar o domínio sobre os seus apetites, para melhor equilíbrio e saúde plena e para uma decisão firme por viver na comunhão e no amor aos irmãos.

Que não falte a coragem para um exercício mais profundo nestas propostas que ajudam a valorizar o tempo quaresmal como edificação de uma nova humanidade que só com pessoas novas se concretiza.

 

  1. A comunidade cristã que oferece o evangelho, em palavra e testemunho, para a edificação de uma nova humanidade.

A caminhada quaresmal não deve ser vivida tão só como itinerário estritamente religioso e na dimensão pessoal ou interna à comunidade cristã, pelo contrário, deve ter como objectivo a proposta do Evangelho como fermento de uma nova cultura e de uma nova sociedade.

Vem neste sentido, a Mensagem do Papa Francisco para a quaresma deste ano. Leva como lema «através do deserto, Deus guia-nos para a liberdade» e, reconhecendo que «Deus educa o seu povo, para que saia das suas escravidões e experimente a passagem da morte à vida» e ainda que «como um esposo, atrai-nos novamente a Si e sussurra ao nosso coração palavras de amor»,  sublinha como apelos, os seguintes passos: «querer ver a realidade»; «é tempo de conversão, tempo de liberdade»; «é tempo de agir e, na Quaresma, agir é também parar»; «na medida em que esta Quaresma for de conversão, a humanidade extraviada sentirá um estremeção de criatividade: o lampejar duma nova esperança».

Na verdade, como afirma o Papa Francisco, «a forma sinodal da Igreja, que estamos a redescobrir e cultivar nestes anos, sugere que a Quaresma seja também tempo de decisões comunitárias, de pequenas e grandes opções contracorrente, capazes de modificar a vida quotidiana das pessoas e a vida de toda uma coletividade: os hábitos nas compras, o cuidado com a criação, a inclusão de quem não é visto ou é desprezado».

Daí o Papa convidar «toda a comunidade cristã a fazer isto: oferecer aos seus fiéis momentos para repensarem os estilos de vida; reservar um tempo para verificarem a sua presença no território e o contributo que oferecem para o tornar melhor».

 

  1. Tempo de conversão que se faz partilha. Saboreando a beleza e o encanto do amor misericordioso de Deus, o baptizado reconhece-se portador da mesma misericórdia para com os seus irmãos. Deste modo torna-se portador de reconciliação e de perdão, arauto do amor que se traduz na partilha com os mais pobres e marginalizados.

Tal como acontece todos os anos, também nesta quaresma somos interpelados a olhar em redor e deixarmos interpelar pela pobreza que nos rodeia e abrir o coração para a partilha generosa.

Como nos recorda o Santo Padre, «o amor de Deus e o do próximo formam um único amor. Não ter outros deuses é parar na presença de Deus, junto da carne do próximo». Aliás, «oração, esmola e jejum não são três exercícios independentes, mas um único movimento de abertura, de esvaziamento: lancemos fora os ídolos que nos tornam pesados, fora os apegos que nos aprisionam».

Como é habitual, a partir da renúncia, jejum, ascese e partilha a que somos convidados, ouvido o Conselho Episcopal diocesano e o Colégio de Consultores, o fruto desta renúncia quaresmal deste ano será destinado, em partes iguais para a construção de um Centro Escolar em Cacheu, na Guiné, e para as Irmãs Carmelitas do Mosteiro de Santa Teresinha do Menino Jesus, em Viana do Castelo, que se propõem melhorar as suas condições de habitação e não possuem recursos económicos.

A par com a ajuda económica, está o despertar das comunidades cristãs, no primeiro caso, para a situação das crianças que necessitam de condições de escolaridade num país e numa Igreja com muitas dificuldades neste domínio como em outros; quanto às irmãs Carmelitas, urge conhecê-las melhor e a profundidade do seu carisma na evangelização da nossa diocese. Que seja um despertar da vocação religiosa e de consagração nos nossos jovens.

Coloco esta caminhada quaresmal junto de Nossa Senhora, Santa Maria Maior, S. Bartolomeu, S. Paulo VI e S. Teotónio para obtermos as suas bênçãos e sob a sua protecção caminharmos decididamente pelas sendas da renovação da humanidade.