“Precisamos de descer ao nível da vossa cadeira de rodas para ficarmos sensibilizados para muitas coisas”

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As barreiras físicas e psicológicas com que as pessoas com mobilidade reduzida se deparam no seu dia-dia foi o tema em debate numa sessão dinamizada pelo Rotary Clube de Ponte de Lima que contou com os testemunhos de Isabel Mendes e Miguel Franco. A necessidade de “mudar mentalidades” para que estes cidadão não sejam apontados como “os coitadinhos” e o alerta para mudar alguns aspectos que facilitem o seu dia-a-dia em espaços públicos e privados foram alguns dos apelos lançados pelos participantes. 

Foi em 2021 que a vida de Isabel Mendes, ortoptista no hospital de Viana do Castelo na Unidade Local de Saúde do Alto Minho, deu uma reviravolta. As pernas não lhe obedeciam, mas não baixou os braços e fez da cadeira de rodas a sua melhor amiga. No entanto, nem tudo são “sorrisos e palavras bonitas” e Mónica Morais, enfermeira especialista em saúde mental e psiquiátrica que moderou o debate, quis saber de que forma se ultrapassam todas as barreiras, não só as físicas, mas também as psicológicas. 

“As barreiras físicas não ultrapasso, contorno”, atirou Isabel Mendes, admitindo que, “por muito que se fale, é difícil vencê-las no dia-a-dia”. “Ou sei o caminho certo e sei que não vou ter obstáculos ou mudo a rotina e tenho surpresas”, gracejou, frisando que “a parte psicológica é extremamente importante”. “É um reconstruir diário porque há coisas que me magoam. E é sempre diferente”, declarou, apontando alguns exemplos da vida do seu quotidiano. “Por exemplo, num quarto de hotel, mesmo que adaptado, não imaginam o problema que é para abrir a porta quando estamos sozinhos numa cadeira de rodas. São coisas que acabam por causar uma certa frustração”, vincou, notando que passou de uma pessoa “superindependente para ser dependente, em graus diferentes”. 

“Em algumas já sou independente, para outras preciso de apoio, mas são coisas que acabam por causar alguma irritação interior”, frisou, notando que aprendeu a resignar-se perante algumas situações. “Quem está numa cadeira de rodas é a coitadinha e a coisa maravilhosa da minha vida é a cadeira de rodas porque é o que me dá liberdade. Ás vezes até me esqueço que estou numa cadeira de rodas e estou tranquila na minha vida no supermercado, no banco, nos correios… no entanto, o olhar das pessoas lembra-nos isso. Entendo que não é por mal”, declarou Isabel Mendes, que já foi interpelada por alguns pacientes no seu local de trabalho.  “Até já me perguntaram por que é que não fui para a reforma”, gracejou, garantindo que no seu local de trabalho “sempre houve muita vontade que regressasse”. “Houve algumas adaptações, mas faço o mesmo trabalho. Apenas estou sentada numa cadeira diferente e facto de me sentir útil é essencial”, declarou, destacando a importância da família em todo o processo. “É o grande suporte e é, em grande parte, responsável pela nossa reconstrução diária”, sustentou. Admitindo que “a sociedade vai-se abrindo” para estas questões, Isabel Mendes notou que os edifícios públicos já estão adaptados, mas realçou a necessidade de acontecer o mesmo por parte dos privados. “Por exemplo, de uma forma geral, existe dificuldade em entrar num restaurante, circular, ir á casa de banho… Muitas vezes, a casa de banho para pessoas com deficiência até serve de arrecadação ou não dá para fechar completamente a porta”, declarou, desejando que alguns aspectos do dia-a-dia possam melhorar. “Somos uma minoria e temos todos os direitos, mas temos que estar sempre, sempre a lutar e depois parece que somos os revoltados da sociedade e eu não gosto disso”, realçou. 

Numa sessão que também contou com testemunhos e apelos da APPACDM, AAPEL e do comandante dos Bombeiros Voluntários de Ponte de Lima, João Paulo, um colaborar do hospital de Ponte de Lima também destacou algumas das dificuldades apontadas por Isabel Mendes. “Eu posso ser independente, sou útil e não um coitadinho”, vincou. 

Miguel Franco assumiu a função de director do Teatro Diogo Bernardes em 2021e o seu principal objectivo foi repensar a programação, uma vez que, em termos de barreiras físicas, o edifício cumpre praticamente todas as normas. “Há um problema de acessos do lado dos artistas, mas a Câmara já mostrou sensibilidade para alterar. No entanto, não é imediato e o projecto está a ser estudado para ser ajustado a um edifício histórico. Está em vias de ser resolvido”, garantiu, acrescentando que o foco está, agora, em dinamizar uma programação “mais inclusiva”, não só em termos de públicos, mas também para quem vai subir ao palco. “A primeira ideia foi calibrar os segmentos porque como teatro municipal tem que dar resposta ao maior número possível de variedades. Depois comecei a pensar nas questões da representatividade e por que não ter na programação projectos inclusivos, combatendo também as barreiras sociais e intelectuais”, salientou. 

Apesar de notar que ainda não há em Portugal muitas companhias com a preocupação de incluir artistas diferentes, Miguel Franco explicou que o Teatro já tem incluído na sua programação diversos espectáculos inclusivos, dando como um dos exemplos um projecto local: a companhia de artes performativas da APPACDM de Ponte de Lima. 

De formar a poder responder da melhor forma a esta temática, os colaboradores têm participado em diversas acções de formação para “trabalhar as atitudes com a diferença e o tipo de discurso no contacto com espectadores, artistas e equipas”. Depois de uma observação sobre as relações entre empregador e colaboradores com mobilidade reduzida ou outro tipo de diferença, Miguel Franco direcionou a resposta para o “Manual para um recrutamento inclusivo”, publicado pela Associação para as Artes Performativas em Portugal. 

Da plateia surgiu, ainda, a questão da importância da educação e formação nas escolas sobre as questões da inclusão. Paulo Sousa, vice-presidente do Município de Ponte de Lima e responsável pelo pelouro da educação, vincou que “mais importante que a obrigação legislativa é a mudança de mentalidades da sociedade”. “E isso tem acontecido. Trabalha-se muito em prol da integração na nossa comunidade, mesmo do ponto de vista artístico”, garantiu, referindo o trabalho da disciplina de Cidadania, bem como da equipa multidisciplinar do Município que acompanha as crianças com necessidades especiais. “E promovemos formação para os colaboradores para que o dia a dia destas crianças seja mais inclusivo. Destacamos, muitas vezes, funcionários fora do rácio para estarem em apoio permanente a algumas crianças”, realçou, afirmando que o Município dá o exemplo empregando alguns trabalhadores com condicionantes. 

Notando que, sempre que a autarquia intervém numa rua “tenta melhorar as acessibilidades”, mas admitiu que do ponto de vista do espaço público, ainda existem algumas limitações e deu como exemplo o posto de turismo, instalado da Torre da Cadeia Velha, que não tem acessos para pessoas com mobilidade reduzida. “É mais fácil pensar na mudança do local do que apresentar alguma solução porque não nos deixam fixar nada na parede”, explicou.

Diogo Barros, presidente do Rotary Clube de Ponte de Lima, explicou que este debate pretendeu “agitar as ideias” e “deixar alertas” e mostrou-se sensibilizado com os testemunhos. “É uma felicidade saber que há uma vida para além da que planeamos”, salientou, destacando a importância do humor para enfrentar as situações do dia-a-dia. “Precisamos de descer ao nível da vossa cadeira de rodas para ficarmos sensibilizados para muitas coisas”, salientou, concordando que “as barreiras psicológicas são as mais difíceis de ultrapassar”.